quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Como atender a enorme demanda dos pacientes brasileiros por remédios de cannabis?


Atualmente surgem novos estudos a cada dia comprovando que medicamentos feitos à base da resina da cannabis são eficazes no tratamento de diversas doenças. Um número  cada vez maior de cientistas em diferentes países têm aceitado o uso desses remédios e dos extratos de maconha como eficazes para tratar doenças e aliviar sintomas variados. Entre os possíveis beneficiados estão pacientes com AIDS, anemia falciforme, anorexia, ansiedade, artrite, ataxia, câncer de diferentes tipos, dependência de drogas, desordens digestivas, doença de Crohn, distonia, dores crônicas, enxaqueca, cólicas, epilepsias, esclerose múltipla, esclerose lateral amiotrófica, espasticidade, glaucoma, reumatismo, dentre outras doenças. Todas elas podem ser tratadas diretamente com medicamentos feitos com cannabis ou extratos da planta, ou podem ter seus sintomas aliviados de alguma maneira com o uso da erva.


São milhões de pessoas em todo o país que poderiam fazer uso de algum medicamento à base de cannabis para aliviar sintomas ou tratar doenças, mas que sofrem com a ausência total de oferta nacional. Os pacientes brasileiros que precisam desse tipo de medicamento não encontram fornecedores sequer de produtos importados tendo eles mesmos que fazer todo o procedimento, desde solicitar autorização para uso e importação, até fazer contato com o produtor no estrangeiro ou mesmo desenrolar os trâmites com a aduaneira. Atualmente são mais de 1000 pessoas autorizadas a importar medicamento e extratos de cannabis do exterior, que poderiam muito bem ser atendidos por produtores nacionais, caso eles existissem. Ou mesmo por empresas que importem o medicamento e estoquem quantidade no país. Além do fato de que se houvessem produtores nacionais certamente o acesso a esses medicamentos seria facilitado e muito mais pacientes iriam se estimular a tentar o tratamento.

Hoje há um vazio no mercado de produtores e distribuidores nacionais de extratos e medicamentos à base de cannabis, ainda que já exista uma lei desde 2006 prevendo a regulamentação deste mercado. Porém, na prática, como não houve nenhuma demanda de produtores e distribuidores de nenhum tipo, não houve nenhuma regulamentação desta parte da lei. Sabemos que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária deveria regulamentar a matéria, mas ela só pode fazer isso se houver demanda e, por enquanto, a única demanda que chegou até a ANVISA foram a dos pacientes necessitados da medicação. Mas quais seriam os modelos possíveis para regulamentar o cultivo, produção e distribuição de medicamentos à base de cannabis no Brasil?

Existem 4 principais modelos de cultivo e produção de maconha medicinal que podem ser utilizados como base no processo de regulamentação da matéria: Empresas, Cooperativas, Associações sem fins lucrativos e Estatização.

Empresas

As empresas farmacêuticas já existentes poderiam investir em solicitar à ANVISA as autorizações para começarem a pesquisas e produzir remédios à base de cannabis e sua resina. Também poderiam utilizar toda a rede de farmácias e distribuidores já existentes que vendem outros remédios para também vender remédios à base de cannabis, mas por algum motivo preferem não fazer isso e evitar colocar produtos à base de cannabis para concorrer com os medicamentos alopáticos já existentes.

Vantagens: Empresas conseguem captar grandes quantidades de recursos financeiros de maneira rápida, proporcionando a realização de pesquisas e investimento em áreas específicas como seleção e cruzamento genético, métodos de extração da resina e preparo dos medicamentos, inovações tecnológicas, etc.

Desvantagens: Empresas, mesmo aquelas do ramo da saúde e dos cuidados com seres humanos, atuam dentro da lógica de mercado onde o que mais importa é manter os lucros. Claro que surgirão novas empresas interessadas em explorar esse mercado, mas a realidade é que todas as empresas farmacêuticas tradicionais já estabelecidas no mercado conhecem as propriedades medicinais da cannabis, mas preferem continuar investindo nos produtos farmacêuticos que já estão dando lucro atualmente.

Cooperativas

As cooperativas mantém-se dentro da lógica do mercado tendo como objetivo principal o lucro, porém esse lucro é dividido entre os cooperados. Em outras palavras, há o interesse de lucro, porém não há a exploração do trabalhador e, em geral, são eles próprios que administram a cooperativa e repartem os lucros entre si, separando uma parte para investir no crescimento da cooperativa. As cooperativas podem unir cultivadores, biólogos, farmacêuticos, engenheiros químicos e demais profissionais que podem se envolver no cultivo e produção de extratos e medicamentos à base de cannabis. As cooperativas podem distribuir seus produtos através da rede de farmácias já existentes no país.

Vantagens: Mantém o mesmo potencial de arrecadação de investimentos que uma empresa, porém, em tese, não pratica a exploração do trabalhador já que os lucros são divididos entre os cooperados.

Desvantagens: Mesmo não explorando o trabalhador mantém a lógica de acúmulo de capital e lucratividade como prioridade já que não mantém como compromisso estatutário a participação de pacientes na tomada das decisões administrativas.

Associações sem fins lucrativos

As associações sem fins lucrativos podem ter diferentes tipos de objetivos, em geral focando em dois principais: Pesquisa científica ou auxílio aos pacientes. Se contar com o quadro necessário de profissionais qualquer associação sem fim lucrativo do gênero, que tenha um desses dois objetivos, poderá solicitar à ANVISA autorização para cultivo e produção de extratos e medicamentos à base de cannabis.

Vantagens: Associações sem fins lucrativos não podem distribuir o capital acumulado entre nenhum dos associados, tendo obrigatoriamente que revertê-lo em investimentos que beneficiarão a associação e os associados. Em outras palavras, a prioridade das associações sem fins lucrativos será sempre, por princípio estatutário, o bem comum dos associados, que jamais poderá se reverter em benefício de um ou mais indivíduos em especial, como ocorre com os modelos de empresa ou cooperativa. Maior proximidade entre os pacientes e os produtores do medicamento, garantindo um rápido feedback com relação à real eficácia dos produtos. Isso possibilita que os produtos possam passar por modificações que atendam às demandas reais dos pacientes. Maior transparência nos processos de cultivo e produção dos extratos e medicamentos.

Desvantagens: Dificuldade em conseguir investidores, já que não têm como objetivo o lucro financeiro. Dependem exclusivamente de doações, do dinheiro arrecadado entre os associados e das escassas possibilidades de financiamento estatal. Limitações no investimento em pesquisa e tecnologia de ponta devido as dificuldades em arrecadar recursos. Limitação quanto aos tipos de medicamentos que podem ser produzidos devido ao alto custo de algumas tecnologias.

Estatização e Concessão Pública

O papel do Estado e do Poder Público na regulamentação dos usos medicinais da maconha pode (e deve) ser feito de diferentes maneiras. O Estado precisa manter a fiscalização, monitoramento das iniciativas do gênero sob controle da ANVISA ou de outro órgão criado especialmente para este fim. Tal órgão deverá emitir as autorizações específicas e fiscalizar para que os projetos aprovados funcionem de acordo com o planejado. Além disso, órgãos financiados pelo governo ou diretamente vinculados a ele, que tenham relação com a temática também devem ser envolvidos no processo. A Embrapa, os centros de pesquisa e universidades públicas, hospitais públicos, dentre outros, podem e devem ter papéis atuantes nesse processo, cada um em sua área específica. A Embrapa, os centros de pesquisa e universidades podem trabalhar na seleção e cruzamento genético de plantas com propriedades medicinais específicas e no desenvolvimento de tecnologias e conhecimento. Os hospitais públicos e universidades podem também atuar realizam pesquisas clínicas sobre os potencias terapêuticos da cannabis e seus derivados. Existem inúmeras possibilidades de atuação do Estado e do Poder Público nesse processo e todas elas devem ser levadas em consideração.

Com relação ao papel do estado no cultivo e produção do medicamento. Ou o próprio estado cultivaria e produziria medicamento através de um órgão já existente ou de um criado especialmente para isso. Ou o Estado daria concessão à uma ou mais empresas privadas para explorarem este mercado com um controle dos preços mantido pelo governo. Essa última solução tem sido adotada por países como Canadá, Holanda e Uruguai.

Vantagens: Se o Estado não monopolizar o cultivo ou produção do medicamento é muito bem-vinda a participação do maior número de órgãos do Estado ou de empresas com concessão para tal tarefa. Isso porque quanto mais iniciativas de produtores concorrendo menores serão os preços dos medicamentos. Outro papel fundamental do Estado é fomentar a pesquisa científica sobre o tema através dos mais diferentes meios. Também é muito importante que o Poder Público mantenha sempre a tarefa de emitir as autorizações e fiscalizar a realização dos projetos.

Desvantagens: Se o Estado monopolizar a produção do medicamento e as pesquisas científicas certamente não conseguiremos atender toda a demanda possível e ainda corremos o risco de ficar dependendo de um serviço mal prestado ou alvo da tradicional corrupção brasileira. Mesmo que não haja monopólio do estado nessa matéria é importante que a sociedade civil fiscalize e pressione os órgão públicos responsáveis por mudanças favoráveis aos pacientes.

Qual o melhor modelo para o Brasil?

No início da regulamentação dos usos medicinais na Califórnia eles adotaram um modelo que oscilava entre cooperativas e Associações, que trabalhavam em parceria e, poucos anos depois, pequenas e médias empresas se iniciaram no ramo. Hoje, em muitos estados norte-americados existem inúmeras iniciativas de muitos tipos ocorrendo, que podem ser colocadas no tipo de empresas, associações ou cooperativas, todas fiscalizadas por órgãos estatais. No Chile também há uma variedade de iniciativas de diferentes modelos ocorrendo ao mesmo tempo. Empresas privadas, associações de pacientes e cooperativas. No Canadá, Inglaterra, Holanda, Uruguai e outros países há uma regulamentação dos usos medicinais controlada mais de perto pelo Estado, onde empresas privadas ganham concessão para produzir e comercializar flores in natura, extratos ou medicamentos à base da erva, sendo fiscalizadas de perto por órgãos do governo. E para o Brasil, existe um modelo ideal?

Essa resposta é impossível de ser dada de maneira definitiva por muitos motivos. O Brasil é um país grande, cada região tem suas particularidades econômicas, sociais, políticas etc. Existe um número muito grande de pessoas que poderiam se beneficiar de medicamentos à base de cannabis, com as mais diversas doenças. Isso tudo torna essa resposta mais complexa do que parece a princípio. A meu ver o ideal é permitir que todos os modelos existam de maneira harmônica. As empresas e órgãos do estado (Embrapa, Universidades etc), poderiam investir de maneira intensa em pesquisas e inovação tecnológica de uma forma que as cooperativas e associações dificilmente conseguirão. Por outro lado, as associações e cooperativas de produtores garantirão que os pacientes tenham alguma influência no mercado produtor e, por consequência, no controle da qualidade e preço dos extratos e medicamentos oferecidos aos pacientes. À ANVISA continuaria cabendo o papel de fiscalizar todas essas atividades e garantir que os pacientes possam de fato ter acesso amplo a medicamentos com a melhor qualidade e os menores preços possíveis. Todo o sistema deveria ser permanentemente monitorado, fiscalizado e aperfeiçoado, à medida que fossem sendo encontradas falhas ou desajustes. Nenhuma solução deve ser considerada definitiva numa sociedade fluída e constantemente em modificação. É assim com todos os temas da sociedade e deve ser assim também com a regulamentação dos usos medicinais da maconha.

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